Nossa morte de cada dia

 

“A morte é um dia que vale a pena viver”. Esse é o brilhante título do livro da médica Ana Cláudia Quintana. Ela lida com pacientes diagnosticados com doenças terminais. Gente que tem, pela medicina, dias contados para viver.

Mas quem não teria? Só não sabemos quantos… Essa é a reflexão proposta pela profissional que encara a sentença de morte como uma chance de viver melhor. Assisti a uma palestra dela, em que defendeu que, quando perdemos alguém, essa pessoa se mantém viva, em silêncio, na nossa rotina pelo o que ela nos deixou na lembrança, pelos exemplos que nos inspira, pelo que ela nos disse. Essa é a vida que a morte de alguém nos proporciona.

Aliás, a vida é a arte de morrer todos os dias. E não falo aqui da morte biológica do nosso corpo, que a cada dia em funcionamento também é um a menos no prazo previsto para a sua vida útil.

Morremos muitas vezes ao longo do mesmo dia: de raiva, de sono, de fome. Saudade também mata. Morremos igualmente de amor. Mesmo poder homicida têm o desgosto e o descaso. Matam também o ciúmes e o cansaço. Morre-se pelo exagero, na verdade. Estamos sempre “mortos” de desejos e há sempre quem “morreu” de alegria.

Também matamos todos os dias. E as nossas vítimas são sonhos e fantasias. Matamos diariamente pessoas e lembranças. Há um monte de falecidos em nosso coração: gente que se foi de morte natural, pelo distanciamento inerente à vida, e gente que enterramos vivos por falta de melhor opção, para seguirmos vivos.

Temos todos, ainda, grande potencial suicida e matamos nossa essência, nossa espontaneidade para nos acomodarmos aos moldes alheios. Essa é a pior das mortes. É justamente essa que nos impede de nos mantermos vivos, dentro dos outros, quando verdadeiramente formos embora.

O assassinato de nossa personalidade, sim, é crime inafiançável, visto imperdoável. É passível de sentença de morte depois da própria morte. Afinal, se vivemos como defuntos, como solucionar a pergunta que a doutora Ana Cláudia fez a plateia durante a sua apresentação: “Qual a marca você quer deixar na sua vida?” Se estamos mortos em vida, desde agora, não há como responder.




Flávia Duarte, Jornalista, nascida e formada em Brasília. Trabalhou no Correio Braziliense de 2001 a 2017, quando largou tudo para viver um ano sabático na Espanha. Além de viajar, se dedicou a um máster de Criação Literária, em Barcelona. Escrever é mais do que a ferramenta de sua profissão, é a forma de se conectar às pessoas, de traduzir a alma e de encher o coração.



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